terça-feira, 17 de janeiro de 2012

HOSPITALIDADE

 A Ordem exprimiu tradicionalmente o carisma recebido com a palavra “hospitalidade”. Este termo não só não perdeu a sua capacidade expressiva nos dias de hoje, mas é proposto por alguns como uma categoria fundamental da nova moralidade para o nosso tempo. Por isso, é importante refletir sobre ela, considerando-a o eixo em volta do qual gira a espiritualidade peculiar da Ordem.


O que é a hospitalidade?
A hospitalidade fala-nos das relações que se estabelecem entre um hóspede e a pessoa que o acolhe (anfitrião ou anfitriã). Nessas relações, há obrigações e responsabilidades recíprocas. O hóspede e o anfitrião estão numa relação mútua: não existe um sem o outro. O hóspede é um ausente que, em qualquer momento, pode tornar-se presente e reivindicar o seu direito de hospitalidade. Nos casos em que vigoram as leis da hospitalidade, o ausente tem direitos perante o anfitrião (ser acolhido) e o anfitrião, ainda não constituído enquanto tal, tem deveres em relação ao hóspede que se lhe apresenta (acolhê-lo).
Não é fácil explicar o motivo que leva os seres humanos a serem hospitaleiros. Em todo o caso, a relação de hospitalidade não é automática, pois o hóspede pode ir-se embora, e o anfitrião pode recusar-lhe o acolhimento; mas também não é arbitrária, dado que o anfitrião sente-se moralmente obrigado a receber um hóspede, mesmo que ele se torne impertinente.
A característica fundamental da hospitalidade é o acolhimento e o reconhecimento do hóspede por parte do anfitrião; no entanto, esse reconhecimento e acolhimento têm características especiais:
A hospitalidade é virtualmente universal. Qualquer pessoa pode ser um hóspede; reconhecê-la como hóspede pressupõe que se dê um passo muito importante no sentido do reconhecimento de todos os seres humanos como hóspedes virtuais. Qualquer pessoa no mundo tanto pode ser um hóspede como um anfitrião virtual. Em muitas culturas é proibido perguntar ao hóspede qual é o seu nome ou a sua proveniência, como se ele fosse uma representação simbólica do ausente. A proteção do anonimato do hóspede é o sinal de que em cada hóspede vemos qualquer pessoa do mundo. Os nossos deveres para com os visitantes que vêm ao nosso encontro são muito concretos. Mostrar um certo desinteresse por conhecer o seu nome, procedência ou estirpe não significa desprezo; pelo contrário, pressupõe disposição para uma hospitalidade aberta a todo o mundo.
A hospitalidade revela um alto sentido da moralidade e da política. O hóspede não é recebido apenas como um determinado indivíduo, mas também como embaixador substituível, como representante de outros; uma vez que os seres humanos constituem grupos, comunidades, sociedades e nações, cada indivíduo está inserido nesses agrupamentos. A hospitalidade confronta-nos, por isso, com algo que tem um significado ético e político notável: o acolhimento do estranho, do outro, daquele que não pertence “aos meus”. A hospitalidade é reconhecimento “dos diferentes”: aceitamos que o hóspede seja diferente de nós. Damos-lhe liberdade para discordar de nós.
A hospitalidade é virtualmente sagrada. Na cultura de muitos povos, sente-se que esse “outro”, que é o hóspede, está revestido de mistério. Está envolvido por um certo caráter sagrado. O hóspede pode ser um deus. A hospedagem dos deuses é um tema que surge muitas vezes na mitologia grega, na Bíblia e na tradição de muitas culturas diferentes umas das outras. Os deuses – é comum dizer-se – assumem frequentemente formas irreconhecíveis e pedem ajuda aos seres humanos. A Carta de S. Paulo aos Hebreus recorda-nos que alguns tinham dado hospitalidade a anjos, sem o saberem (Heb 13, 2). Deste modo, sanciona-se religiosamente o direito de hospitalidade: é preciso que nos comportemos com os estranhos como se tratasse da visita de um deus. A figura do hóspede está coberta por uma ambiguidade que a apresenta como um lugar incerto, no qual se põe em jogo para nós algo que é importante. É, ao mesmo tempo, um lugar de temor e desejo. O hóspede torna-se símbolo de mediação entre duas esferas diferentes. No acolhimento do hóspede, verifica-se um encontro entre seres de ordens diversas: o divino, o distante, o ilimitado e inconcebível, são acolhidos num âmbito humano. Por vezes, este encontro tem o caráter de uma irrupção violenta que destrói a ordem acostumada e desestabiliza o espaço familiar; em qualquer caso, acontece sempre algo imponderável e desconcertante.
A hospitalidade é um acontecimento. É imprevisível e incontrolável. Não sabemos quando ela terá lugar, nem conhecemos a pessoa que será nosso hóspede. O anfitrião está sempre preparado porque, no momento mais imprevisto, o Hóspede pode bater à porta.
Cada encontro de hospitalidade é único e implica a atenção a dar a uma pessoa concreta; tem de ser realizado e interpretado segundo as características das pessoas que exercem as funções de hóspede ou de anfitrião. Os deveres do hóspede e do anfitrião são gerais, mas são levadas a cabo no âmbito de um horizonte limitado e finito. Uma pessoa pode estar disposta a cumprir as obrigações que a atenção impõe em todos os momentos, independentemente das suas peculiaridades, em virtude do fato de ele pertencer ao gênero humano; mas estas exigências não se tornam presentes a não ser na forma de um ser particular. Um anfitrião que estivesse à espera de um hóspede universal, que fosse o único capaz de merecer verdadeiramente a sua atenção, e rejeitasse acolher todos os visitantes que batessem à sua porta, por nenhum deles realizar plenamente a condição humana, estaria a negar o acontecer da hospitalidade.

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